Capítulo 26 – O Navio dos Ceifadores
No dia seguinte, o grupo encontrou Billy conversando
com Citan no mesmo bar onde Jessie estivera na noite anterior, e o rapaz os
saudou.
_ Bom dia. Me disseram que estavam
dormindo, então eu tomei a liberdade de entrar e aguardar.
_ Você tá vestido com roupas leves
– Bart observou, notando que o hábito de padre não parecia tão apropriado para
uma missão perigosa – Isso aí chega?
_ Nós, Etones, temos um equipamento
bem particular. Deixe que eu explique, já que vamos trabalhar juntos... Meu
equipamento básico são armas de fogo, de três diferentes tipos: ‘pistola’,
‘arma de Ether’ e ‘rifle’, sendo só a primeira substituível, já que fiz as
outras duas versões eu mesmo.
_ Eu entendi mais ou menos – Bart
coçou a cabeça – Mas é meio complicado, né não?
_ Esta é uma ótima arma – Billy
mostrou uma carabina que ornamentava a parede do bar – Tenho certeza de que tem
uma história significativa.
_ Lógico que tem! – Bart retrucou,
estufando o peito com ar de importância – É o famoso rifle ‘Machiganater’,
passado de geração em geração da Família Fatima.
_ Que desperdício – Billy lamentou
em voz alta – É bom demais pra você, que fica só brandindo um chicote...
_ Ô! – Bart se aborreceu – Por que
tá pegando no meu pé?
_ Ah... Desculpe – Billy sacudiu a
cabeça – Foi só que não pensei que você teria interesse em armas de fogo.
_ Seja como for – interrompeu Elly
– Eu gostaria de saber por que você se tornou um Etone, Billy.
“Eu não tô interessado”, pensou
Bart para si mesmo, virando o rosto. E Billy ponderou por um instante antes de
responder:
_ Hmm, entendo. Etones ajudam
estranhos, então imagino que isso os deixaria curiosos...
_ Não, eu não quis dizer isso –
replicou Elly, meneando a cabeça – Estou curiosa quanto às suas próprias
intenções, pessoalmente. Não sei dizer bem o porquê... É só que você não parece
ser um típico Etone.
Billy olhou para ela, parecendo
visivelmente surpreso por um momento, antes de repetir.
_ Entendo... Bem, já que nosso
trabalho é bem incomum, eu lhes direi enquanto explico...
“Quantos anos eu tinha...? – Billy
perguntou, parecendo falar consigo mesmo enquanto lembranças de uma cozinha
voltaram à sua mente – Não me lembro. Talvez oito ou nove. Naquela época, papai
me ensinou a usar uma pistola. Um dia, papai desapareceu. Simplesmente se
cansou de nós.”
Parecia difícil, todos notaram, recordar
aqueles detalhes, enquanto a mente de Billy lembrava da figura do pai saindo
pela porta e dele e de Primera, muito menor, andando de um lado para o outro no
aposento.
“Ele nunca voltou. Mesmo assim, eu
ficava sozinho no quarto dele com freqüência. A arma do papai, o cheiro do
papai. Aquelas coisas eram tudo o que me restava para lembrar dele. Mas aquela
felicidade não durou muito...”
Ele lembrava-se de correr pela
casa com a irmã; lembrava-se da mãe, sentada à mesa, por vezes olhando para a
porta... E lembrava-se do quarto do pai. E lembrou-se de um dia em especial.
“Quando eu tinha doze anos, minha
casa foi atacada por Ceifadores, e mamãe foi morta. Estavam procurando por
papai, mas mamãe nunca falaria. Eu ainda posso ouvir... O som das balas,
lentamente disparando três vezes... Lembro até do som das cápsulas vazias
batendo no chão. Depois daquilo, os Ceifadores gritaram, e eu ouvi alguém
cair.”
Ceifadores entrando pela casa, e
cercando a jovem Racquel. Billy não tinha presenciado a cena, tendo recebido
ordens da mãe para proteger Primera no quarto dos fundos, mas ele bem podia imaginar
como fora. E lembrou-se de ter corrido para a cozinha quando alguém caíra,
encontrando os Ceifadores mortos e um Etone de pé, empunhando pistolas
fumegantes.
“O Bispo Stone foi quem nos salvou
então. Conhece-lo mudou minha vida dali em diante.”
_ Ei, espera um segundo –
interrompeu Bart, incapaz de fingir indiferença ao perceber algo de estranho na
história – Ceifadores falam?
_ Sim – confirmou Billy de olhos
baixos – Eles não são apenas monstros. Alguns deles são mais inteligentes que
humanos.
“Primera e eu nos escondemos nas
sombras e escapamos da morte, mas ela não diz uma palavra desde então. Como um
enviado divino, o bondoso, forte Bispo Stone me deu um exemplo a seguir. Eu
queria ajudar a salvar alguém em necessidade como ele nos salvou. Eu não queria
que houvesse mais crianças como Primera... Então, comecei a treinar no ‘Ethos’
pra me tornar igual ao Bispo Stone. Deixei Prim aos cuidados do ‘Ethos’ e
entrei para o monastério.”
“Muitos anos se passaram. Terminei
o treinamento no monastério e me tornei um Etone. Eu voltei para casa para
abrir o orfanato... E ele... tinha voltado, de repente.”
Ele lembrava-se de, já adulto,
estar tomando conta da irmã quando Jessie surgiu à porta. E fora um choque para
ambos.
_ Mas ele estava diferente. Algum
acidente terrível o tinha mudado. Não só sua aparência, mas seu caráter e modos
tinham mudado inteiramente, também. Eu me lembrava dele como um homem quieto.
Mas... Mais do que aquilo, eu achei que talvez eu não me lembrasse realmente
dele. É por isso que... Nunca consigo pensar nele como um pai.
“Mas Prim precisava de um pai –
ele lembrou da menina sempre ficando mais alegre quando Jessie surgia,
seguindo-o para toda parte – E ela se afeiçoou a ele. No fundo do meu coração,
eu pensei que também queria um pai. Mas... mesmo agora, eu simplesmente não
consigo acreditar que ele é meu pai verdadeiro.”
As lembranças pareceram desvanecer-se, e Billy
viu-se novamente olhando para a ‘Machiganater’ na parede. E foi incapaz de
reprimir outra lembrança.
_ Hah! Isso vai soar patético,
mas... Eu quase cheguei ao ponto de vender meu corpo pra sustentar Prim, já que
só tivemos um ao outro por tanto tempo... Apesar disso, Prim prefere o pai que
ela nunca conheceu... Aquele que de repente apareceu de lugar nenhum.
_ ‘Quase vendeu seu corpo’?! –
Bart parecia não acreditar no que tinha ouvido – Você não sabe, garoto...? Tem
coisas que dá pra conseguir de volta depois de vendidas, e outras coisas não!
Não entende isso?
_ É claro que eu recusei – Billy
voltou-se para eles, parecendo um pouco envergonhado – Mas me disseram que
dariam 3000 por uma noite...
_ Idiota! – Bart explodiu –
Escuta... Da próxima vez que você e sua irmã precisarem de ajuda, venha ao meu
navio. Somos auto-suficientes, então pelo menos você não precisa se preocupar
com comida e um lugar pra dormir! Mas nunca mais fale em ‘vender seu corpo’ na
minha frente...! Entendido?!
_ Será possível...? – Billy estava
visivelmente admirado – Talvez você possa ser um ‘bom sujeito’, no fim das
contas...?
_ ... Por que você simplesmente
não diz ‘obrigado’? Putz...! – Bart emburrou, e Billy por um momento ficou sem
ter o que dizer.
_ Er... uh... Bem... Você ainda
não tomou conta de nós, então eu não vou dizer!
_ Lindo, garoto – Bart ergueu os
braços em abandono – Uma gracinha, mesmo!
Elly simplesmente não podia
acreditar na discussão que estava ouvindo, vinda de dois adultos. Se fechasse
os olhos, parecia estar ouvindo a dois moleques brigando.
Enquanto a conversa de adultos se
desenrolava, a Yggdrasil fora lançada e tomara o rumo de abordagem ao navio
imenso detectado no radar. Correntes poderosas do mar vieram de encontro a
eles, a ponto de sentirem tremores como se estivessem numa zona de turbulência mas,
como Bart dissera, não queriam dizer muito a uma nave do porte da Yggdrasil. E,
em poucas horas, a ponte de comando mandou o chamado que esperavam.
_ ... Parece que já chegamos... –
Bart comentou, soltando os chicotes.
_ Será possível? – Billy estava
verificando a própria munição – O navio de transporte, atacado por Ceifadores?
Para reduzir o risco de ataque, já
que um número maior não queria dizer necessariamente maior segurança num lugar
de pouco espaço como o interior do navio, apenas Billy, Elly e Rico seguiram no
time de reconhecimento, mantendo assim um bom equilíbrio entre ataques de
Ether, ataques físicos a curta e longa distância, e Citan e Bart decidiram
ficar na retaguarda, cobrindo a possível retirada enquanto os demais procuravam
pelo navio; na verdade, um imenso flutuador do ‘Ethos’ que se movia sobre o
oceano por meio de levitadores.
O trio penetrou no interior da
embarcação, Billy mantendo as duas pistolas diante de si enquanto Elly vinha em
seguida, seu cajado em posição de defesa, e Rico fechando a fila, em guarda.
Apenas luzes de emergência funcionavam, e havia um cheiro estranho no ar que
fazia pensar em um açougue, ou matadouro. Era um ambiente opressivo, e Elly foi
a primeira a se manifestar:
_ Está escuro...
_ Que cheiro terrível é esse? –
indagou Rico em voz baixa, farejando o ar.
_ Esse cheiro incomum é dos Wels –
Billy respondeu, mantendo as armas em riste – Parece bem certo que eles
atacaram. Vamos procurar o interruptor e ligar as luzes.
_ Assustado? – perguntou Elly,
voltando-se um pouco para vê-lo à meia luz.
_ ... Não – mas ele baixou os
olhos, sabendo que não devia mentir para quem o acompanhava – Só um pouco.
Parecia estranho a Rico, com sua
longa experiência de caça nos subterrâneos de Nortune, alertar os monstros que
certamente estavam ocultos ali dentro de que mais vítimas tinham chegado, mas
no fim das contas, apenas ele tinha boa visão noturna, acostumado a lutar com
pouca luminosidade; a moça e o menino podiam acabar se machucando se lutassem
no escuro.
O interior da embarcação parecia
estranho, também; fora os corredores desertos, havia sinais de luta a bordo,
mas nenhuma mancha de sangue. Ao atravessar a porta seguinte à entrada, foram
sair num corredor estreito que os levou ao dormitório da embarcação, e o cheiro
estava cada vez mais forte. Os Wels não deviam estar longe.
_ Cuidado agora, por favor – Billy
sussurrou, voltando a cabeça para Elly e Rico – Não há muita esperança de
sobreviventes, mas precisamos investigar os aposentos. E dada a nossa
condição...
_ ... É o lugar ideal pra uma
emboscada – Rico murmurou entre dentes, e Billy acenou que sim.
_ Mantenham a guarda. Vou abrir a
primeira porta.
Com as duas pistolas apontadas
para diante, Billy escancarou a porta com ímpeto. Um aposento de dormir com dois
beliches à frente da porta e um lavatório à esquerda, e mais nada. Era
estranho; dava um ar de abandono forçado, mas não havia nada ou ninguém
suspeito ali dentro.
_ Nada. Vamos ao próximo.
E outra porta. E outra. Aposentos
abandonados, mas nada indicativo do que fizera toda a tripulação desaparecer.
Por seis vezes eles abriram portas fechadas, encontrando apenas armários,
banheiros ou aposentos desertos. Havia uma última porta no final do corredor,
mas a julgar pela sua aparência, levava a outro cômodo maior, e Billy comentou,
ainda em voz baixa:
_ Não consigo entender; nem um
diário de bordo, ou qualquer sinal de luta...
_ Devem estar em outro
compartimento – Rico sugeriu, olhando significativamente para a porta ainda não
aberta.
_ Claro, mas eu imaginei que poderia
haver alguns deles...
_ Silêncio! – pediu Elly, erguendo
a mão direita e voltando o olhar para o corredor.
Do aposento mais distante havia um
som líquido borbulhante baixo, que fez Billy apontar suas pistolas para o final
do corredor, e Elly colocou seu bastão diante de si. O som foi se repetindo e
parecendo aproximar-se à medida que de cada uma das portas que tinham deixado
abertas um borbulhar se fez presente. E Rico murmurou:
_ Não devíamos ficar aqui.
_ Todos para o próximo
compartimento, depressa! – comandou Billy.
Rico, mais próximo à porta,
derrubou-a com um golpe de seu punho direito, e Billy e Elly recuaram logo
atrás dele enquanto formas arredondadas começaram a emergir dos aposentos
abertos. E então o jovem Etone entendeu:
_ Abandons! Wels de um tipo de
líquido orgânico! Devem ter vindo pelos encanamentos!
_ E como os impedimos de virem até
nós? – Elly perguntou, mas atinou com a resposta por si mesma – Espere!
Líquidos, você disse? Thermo Cubo!
Uma pequena explosão de chamas se
formou no meio do corredor. Dado o espaço minúsculo do ambiente, os Abandons
mais à frente foram consumidos, e os demais ficaram bloqueados pelo ataque
Ether de Elly. Billy aproveitou para avançar e fechar a porta como podia,
pedindo:
_ Depressa Rico, me ajude aqui!
Precisamos bloquear a porta!
_ Eu acho que era melhor nos
preocuparmos com aqueles ali...
Elly gritou, e Billy começou a
disparar enquanto um bando de Wels aterradores, semelhantes a múmias mal
enroladas, irrompeu da única outra porta do aposento.
No acesso da popa, onde Citan e
Bart mantinham guarda, o catedrático repentinamente ergueu a mão, pedindo
silêncio, e olhou em dúvida para Bart.
_ Ouviu alguma coisa?
_ É, eu acho... – Bart soltou os
chicotes – Melhor dar uma olhada, não?
Eles penetraram pela porta, deparando
com a semiescuridão. Mas os Wels em decomposição irromperam, vindos do interior
do transporte. Por aquele caminho, eles não passariam.
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