domingo, agosto 2

Capítulo Vinte e Dois Ponto Um

(...)

A noite caíra no mar. Sentados juntos na beirada da plataforma, o casal via a escuridão se tornar onipresente. Haviam estado em silêncio contemplativo por algum tempo, e Elly se pronunciou:
_ Parece... que estamos sendo levados à deriva.
_ Constantemente à deriva – Fei refletiu – Parece comigo nesse momento.
_ O que quer dizer?
Os reflexos dos dois estavam na água, iluminados pelas estrelas e luas no céu. Em meio à ondulação do oceano, o rapaz respondeu:
_ Eu mesmo tenho sido levado à deriva... Conduzido pelas circunstâncias.
_ Não... Não foi bem assim – Elly corrigiu com gentileza – Em Aveh, você ajudou Bart quando ele precisou. E em Kislev, você deu tudo de si pra defender, pra salvar a todos.
Ela voltou-se para ele e sorriu, de maneira suave – Você até mostrou preocupação comigo muitas vezes.
_ Não... – ele baixou os olhos – Eu não sou tão bom assim.
_ Por quê? – ela perguntou olhando para ele.
_ Provavelmente, bem lá no fundo – ergueu os olhos – eu não estou realmente tentando ajudar. Por alguma razão, eu tenho a impressão de que tudo o que tenho feito, eu fiz porque eu queria ser necessário. Que, se eu fizesse algo por eles... então, talvez, eu teria um lugar ao qual pertencer... Tem um lado de mim que se conforta com essa idéia.
Ele voltou-se para Elly – Não quer dizer que eu não queira ajudar. Mas, também não quer dizer que eu queira. Pode não ser um ‘nada’, mas com certeza também não é o ‘todo’. Eu... estive à deriva, vagando sem rumo, até que conheci você, Elly.
Talvez o rosto dele tenha se avermelhado, enquanto voltou outra vez seus olhos para o horizonte. Talvez o dela também. Mas estava escuro demais para notarem. E ele ergueu os olhos para as estrelas.
_ Agora, estamos perdidos no oceano. Desculpe... Eu fiz você se envolver nisso.
_ Está tudo bem. Não se preocupe comigo – foi a vez dela de erguer os olhos – Eu estive pensando no motivo para estar aqui. Eu podia simplesmente ter voltado. Mas por alguma razão, não voltei – sorriu – Provavelmente porque você disse que é melhor fazer alguma coisa do que coisa alguma. Acho que foi por isso que eu senti que tinha que fazer algo. Está tudo bem não sentir o ‘todo’. Mesmo que só se sinta parcialmente completo, se você repetir isso o bastante, vai eventualmente se tornar o ‘todo’. Um pouco... É melhor do que zero.
_ Você está certa – Fei comentou, olhando para os reflexos dos dois nas águas escuras – Me desculpe...
Fizeram silêncio por mais algum tempo. Os ventos do mar estavam apenas fortes o bastante para agitar seus cabelos e dar uma leve sensação de tempo fresco, mas não chegava a ser frio para um ou para o outro. E Fei então se voltou para Elly.
_ Se formos salvos... Você vai voltar?
_ Provavelmente, não vou voltar pro meu esquadrão – Elly respondeu, ainda olhando adiante – Por enquanto, eu realmente não quero estar lá... Além disso, provavelmente eu poderia fazer alguma outra coisa... Não preciso estar no exército. Então, estou pensando em voltar ao meu país.
_ Isso é possível? Mas, e quanto ao exército?
Fei estava preocupado que a interferência de Elly na missão de Bombardeio a Kislev se tornasse pública e ela fosse punida, mas ela sacudiu a cabeça, os cabelos ruivos ondulando.
_ Não é como se alguém soubesse o que eu fiz. Provavelmente já me classificaram como ‘desaparecida em ação’.
_ Hmm. Espero que pelo menos você sobreviva. Tenho certeza de que você vai descobrir o que quer fazer da sua vida.
_ Você disse... – ela voltou-se para ele – algo sobre... ser confortado.
_ É.
_ Não seja duro demais com você mesmo. Todo mundo quer ser necessário às vezes – ele voltou-se para ela, que continuou falando – Todos nós queremos dar algo de dentro de nós mesmos aos outros para sermos aceitos... Mesmo eu. Lembra de como você se obrigou a comer aquelas rações de emergência?
Era recente demais para não lembrar. Fei acabara devolvendo todo o peixe que comera, e estava tão mal que Elly correu até onde ele estivera, visivelmente preocupada.
_ Ei... Você está bem?
A expressão no rosto dele dizia tudo. Agora que tirara o peixe de dentro de si iria melhorar, mas continuava péssimo, e Elly comentou com ar de reprovação.
_ Eu te disse pra não comer um bicho com aparência tão ruim.
_ O gosto é horrível – Fei continuava inclinado na direção do mar – A última vez em que comi algo tão ruim foi quando o Doc cozinhou. Mas... a não ser que façamos alguma coisa, nós vamos morrer.
_ Acho que não tem outro jeito – Elly buscou um estojo preso em sua cintura – Eu estava esperando economizar isso mais um pouco.
E estendeu para Fei o estojo, abrindo-o. Parecia um kit de emergência.
_ Isso deve nos manter por mais um dia... Mas é só pra calorias de emergência, então não posso prometer nada quanto ao gosto.
Fei pegou uma porção das rações desidratadas de Solaris no estojo de Elly, e sua reação foi espontânea demais ao primeiro contato.
_ Hã? Que? Seco e esfarelado...?
_ Foi o que eu pensei – Elly baixou os olhos – Você não gostou, não é?
_ Quê? N-não, não, está bom. É – e colocou apressadamente na boca, mastigando e continuando a elogiar – Está... ótimo. E... qualquer coisa que você divida comigo não pode ser tão ruim, pode?
_ Você se forçou a comer aquelas rações antes, não foi?
Estavam novamente sentados juntos, em meio à noite, e Elly tinha um sorriso no rosto, embora não estivesse olhando para Fei. E continuou:
_ Para que eu sobrevivesse, teria sido melhor não dividir. Mas, ver você comer, mesmo que o gosto fosse ruim, me confortou. Me senti feliz de ter dividido com você... Fez eu me sentir um pouco melhor.
_ Pro seu próprio bem? – mas ele entendia do que ela estava falando.
_ É, pelo meu próprio bem. Egoísta, eu admito. Mas, acho que está tudo bem agir assim a princípio. Mas pouco a pouco, você aprende sobre a sua própria felicidade... E algum dia, você se torna capaz de partilhar essa parte importante de você com alguém mais. Algum... dia. Ah...
Elly ficou de pé com um ar pensativo em seu rosto, olhando para Fei como se tentasse lembrar-se de algo, e ele perguntou:
_ O que foi?
_ Nada... – ela sacudiu a cabeça – Só acabei de sentir como se já tivesse dito a mesma coisa a você a muito tempo atrás... Deve ser minha imaginação. Eu não podia ter te dito isso antes, porque acabamos de nos conhecer, não é?
Dito isso, Fei olhou para ela admirado. Sentira também a impressão de já ter ouvido alguém lhe dizer aquilo. Era familiar, como se realmente tivesse sido Elly... Era alguém que lhe dava a mesma sensação que ela. Mas...
_ É, provavelmente foi só a minha imaginação...

Na manhã seguinte, Fei veio correndo até a porta do alçapão e bateu apressadamente, chamando:
_ Elly! Ei Elly! Acorde!
_ Bom dia, Fei – ela abriu a porta do alçapão e sacudiu os cabelos, a voz um pouco surpresa – Levantou cedo.
_ Não é hora pra formalidades. Olha só aquilo!!
_ Hã?
Um navio gigantesco da cor de ferrugem vinha em direção a eles. Dois guindastes terminados em garras mergulhavam adiante de si e mais um à bombordo, como que pescando no mar. E um dos guindastes desceu sobre a plataforma em que estavam, que não parecia mais que um container diante do tamanho da embarcação. E o casal foi recebido por um meio humano pingüim, um dos tripulantes, que se dirigiu a eles.
_ Eu fiquei muito surpreso ao ver gente viva flutuando no vasto mar. Pra completar, vocês estavam com dois Gears. Isso é mais que incomum.
_ Obrigada – Elly adiantou-se – Vocês nos ajudaram.
_ É melhor agradecerem ao Capitão – disse o outro – Quem nos deu a ordem de resgatar vocês dois, náufragos, foi o Capitão da Thames.
_ Thames? – Fei não estava entendo coisa alguma – Capitão?
_ A Thames, a cidade do mar. É onde estão agora. O Capitão aqui é um velho camarada meio estranho. Vão ver quando o encontrarem. E isso é pra não dizer que ele é um velho maluco e excêntrico.
_ Hã... E quanto aos nossos Gears? – perguntou Elly.
_ Não se preocupem com isso. Nós os colocamos dentro da Thames pela doca de suprimentos. Entrou água do mar neles, então vai levar algum tempo pra consertar.
_ Estão consertando eles pra nós?
_ Bem estranho que sejamos tão bondosos, aposto que é o que estão pensando – disse o tripulante – Mas, sério mesmo, não tivemos escolha porque são as ordens do Capitão. Bom, eu tenho que ir agora. Sou um sujeito ocupado, sabem. Venham pra a ponte depois de dar uma volta por aí. Tenho certeza de que o Capitão gostaria de conhecer vocês.
E ele se foi, deixando Fei e Elly sozinhos nos convés. E ela reparou que o rapaz tinha uma expressão pensativa no rosto.
_ Fei, o que foi?
_ Tenho a sensação de já ter visto aquele sujeito em algum lugar... mas, esqueça.
Na verdade, o tripulante da Thames parecia-se muito com o navegador de Bart na Yggdrasil, Franz. Tirando da mente as lembranças, Fei seguiu Elly e ambos resolveram conhecer a cidade do mar.
O convés da Thames era realmente enorme. Gears brancos, num total de três, revezavam-se mergulhando e retornando das profundezas em turnos, eventualmente com algo curioso em suas mãos. Estavam fazendo um trabalho semelhante ao dos guindastes, recuperando itens das profundezas. Havia um pequeno mercado também, onde faziam a manutenção do que era resgatado e eventualmente os vendiam. Uma das coisas mais curiosas, no entanto, era o ‘Elevador em Espiral’ da Thames que unia todos os andares da embarcação e que, como o nome dizia, fazia seu caminho girando em espiral para cima e para baixo. Havia dois níveis no porão, sendo o segundo, mais abaixo, uma doca para navios e embarcações que quisessem aportar na Thames, e o primeiro a entrada de suprimentos. O convés ficava no primeiro andar, a ala médica no segundo, a cervejaria de bordo no terceiro e a ponte de comando no quarto, e para lá foram Fei e Elly, dispostos a agradecer e conhecer o famoso Capitão.
Era outro meio humano, como o imediato pingüim. Tinha a aparência de um velho leão marinho num corpo de humano, vestido num traje completo de almirante de cor vermelha, e com um quepe rubro negro. Andava com o auxílio de uma bengala negra e dourada e fumava um cachimbo, e apesar de não saber bem o que esperar, os dois ficaram surpresos com a cordialidade e o ar divertido nos olhos do velho marinheiro quando este veio saúda-los.
_ Vocês são os dois pequenos que flutuaram pra dentro com os Gears.
_ Eu não gosto muito, pra falar a verdade, de ficar flutuando por aí... – Fei respondeu, um pouco embaraçado com sua situação, mas o Capitão riu à vontade.
_ Gahahahahaha. Bem, não leve isso tão a sério. Pra nós, qualquer coisa que retiremos do mar é tesouro. E vocês são um tesouro de grande e verdadeira importância. Fomos realmente cuidadosos, desta vez.
_ Um... Obrigada pela ajuda – Elly disse, e os olhos do Capitão brilharam com a visão da moça.
_ Que linda dama!
Algo como suspeita deve ter transparecido no rosto de Elly, porque a voz do Capitão se tornou risonha novamente – Ah, não faça essa cara, eu não mordo! Eu vou devolver a vocês os seus Gears limpos e perfeitos.
_ Por que está sendo tão bondoso? – Elly perguntou, ainda um pouco admirada. O Capitão de fato não dava a impressão de más intenções. E ele respondeu;
_ Isso é por que...
E ergueu sua bengala para esquerda, espantando Fei e Elly com o movimento brusco enquanto dizia:
_ Eu sou!
Voltou-se para direita, a bengala apontada para frente.
_ Um homem!
E voltou-se para trás, de costas para o casal.
_ Do mar!
O silêncio de Fei e Elly seria, num anime, o momento apropriado para uma gota de suor cômica aparecer enquanto o Capitão gargalhou, ainda de costas para eles.
_ Gahahahahahahahaha.... mas – e voltou-se para os dois, com um olhar gentil – vocês provavelmente estão famintos. Vou providenciar alguma comida para vocês. Haaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaans! – ele voltou-se para o imediato, que definitivamente não estava longe o bastante para justificar tamanho berro – Eu vou recepcionar os convidados! Você toma conta do resto.
_ Sim senhor – respondeu o pingüim no timão – Só não exagere.
_ É claro que eu sei disso – e fez um gesto de pouco caso – Como pode ser tão calmo?
_ O Capitão e todos são muito irresponsáveis – respondeu Hans com tranqüilidade, voltando-se para o timão, e o Capitão respondeu com impaciência.
_ Hmph, sim, sim – e voltou-se para Elly e Fei, enquanto saía da ponte – Deixem eu ir preparar as coisas.
Sozinhos por um momento onde estavam, Fei e Elly se entreolharam, e o rapaz perguntou baixinho:
_ O que...? Quem são essas pessoas, afinal?
_ Não parecem ser... gente tão má.

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