segunda-feira, novembro 28

Leitor


Só uma idéia que eu tive no dia de hoje, 28/11/11, depois de uma notícia triste sobre seres humanos. Olha só...


03/04

A primeira vez em que reparei nele.

Tava cansado, voltando da escola depois de ter trabalhado o dia inteiro, como de costume, e em uma das curvas do ônibus eu notei esse cara, lembrando que já tinha visto ele ali antes. Outro dia, claro, mas tinha. Sempre sentado no banco único, sempre distraído com alguma coisa, parecendo indiferente aos sacolejos. Quero dizer, a gente rala o dia inteiro e sempre fica com inveja de quem tá sentado, ainda mais quando o ônibus acelera na ladeira, e parece procurar de propósito cada buraco e valeta da rua. Mas esse cara... Ele simplesmente não parecia notar coisa nenhuma.
Já tinha visto ele enquanto eu passava pela catraca, e sabia que o que distraía ele era um livro. Não deu pra ver a capa. Faz tempo que tinha visto ele com esse mesmo livro, e me perguntei se estaria relendo. Nah, bobagem. Já é chato o bastante ter que ler uma vez; devia ser capa parecida. Ainda pensava nisso quando desci.

06/05

Engraçado como nem sempre ele tá no ônibus, mas quando tá é virtualmente impossível ver em outro lugar. Agora tenho certeza, tá lendo outra coisa... mas ele ri enquanto tá lendo. Por vezes um sorriso disfarçado com a mão no rosto, outras vezes é tanto que o corpo inteiro chacoalha. Que maluco. Mais de uma pessoa reparou, que eu vi, e se fosse eu morria de vergonha de me pegarem assim, rindo sozinho, de alguma coisa escrita num livro, ou gibi, sei lá. Quero dizer, não é da minha conta, mas ele até parece maluco...!

08/05

Esquece, ele não 'ri' quando tá lendo, reparei hoje... Também arregala os olhos, acena com a cabeça como quem concorda, dá de ombros... Tá, eu sei, não é da minha conta, mas entre uma curva e outra do ônibus, quando a passageira sentada no banco do meu lado não tem um decote muito cavado, ou é uma tiazinha... ou tiozinho -_-'... a atenção acaba voltando pro maluco do livro. Já vi gente dormindo, conversando, ouvindo música no talo com fone de ouvido, e sem fone - e dá vontade de esmurrar, nesse caso - mas até onde dá pra ver, ele não se perde. De quando em quando, se o ônibus dá uma brecada muito brusca ou se demora tempo demais parado em algum lugar - e Deus sabe que isso tem rolado muito nos últimos tempos, com a Avenida dos Países em reforma - ele interrompe a leitura um pouco e olha ao redor, parecendo curioso, mas em segundos volta a atenção pro que estiver lendo, como se perturbação nenhuma fosse mais interessante. Afinal, o que ele tanto lê...?

10/08

Dessa vez não tinha lugar pra sentar quando o cara apareceu, mochilinha nas costas e livro na mão, e um vislumbre rápido mostrou pra ele o mesmo; nada de leitura hoje, colega! Não tem lugar...

Hein? Olha lá; ao invés de passar pro fundão, ele mudou a mochila pra frente, parecendo mãe com nenê no colo, recostou na barra de apoio logo ao lado do lugar do motorista, trançou o braço direito nela, e... tá lendo! De pé, de costas pro sentido em que o ônibus avança - o que deixa qualquer um enjoado - e tá lendo, parecendo muito pouco perturbado pelo movimento frenético do busão. Tudo bem, parece que não é tão tranquilo quanto o lugarzinho reservado onde ele costuma sentar, mas tá se virando! Sem uma das mãos pra virar a página ele apoia o livro na mochila e usa a mesma mão segurando o livro pra isso, mas continua lendo com a mesma atenção, isso é claro - basta ver que tá fazendo as mesmas caras e bocas de sempre, às vezes rindo, às vezes dando de ombros... Cara, que doido! Não tá nem aí pros outros não, véio...?

Ouço um carinha sentado no banco de trás comentar alguma coisa com a menina sentada à esquerda dele, e ela dá uma risadinha. Pela direção que tão olhando, nem preciso adivinhar; é do leitor que eles riem. Mas, engraçado... Acabo sentindo a 'raiva alheia', o que talvez o leitor sentisse se ouvisse os comentários. Tão rindo do quê, o cara não tá incomodando ninguém...

E é quando eu me toco; ele não ouviria os comentários. Não sente os trancos do ônibus, nem o cheiro das pessoas suadas, nem qualquer outro desconforto. Tá ciente o bastante pra não perder o ponto, talvez, mas enquanto estamos todos aqui, pensando na canseira do dia, no semáforo que não abre e nos problemas do dia... ele não. Esse cara deve tá numa escola de bruxos, encontrando com vampiros ou vampiras, caçando prisioneiros fugitivos ou até fugindo de algum maníaco de história de terror, ou monstro. Sei não. Mas ele tá tão concentrado que estar de pé, sentado, tanto faz, se puder continuar lendo. Tanto, que se alguém precisar de alguma coisa, vai ter que mexer com ele pra isso. E me pego com um pouco de inveja, e um tanto de admiração. Meus professores reclamam que eu não sei escrever direito, me mandam ler uma pá de livro pra escola... e eu capoto no sono nas primeiras cinco linhas. Não consigo, nem quero, ler coisa nenhuma. Mas esse cara lê com um gosto que acho que eu não tenho nem pra ver filme. Quase me deixa curioso.

07/09

Esquisito. Nunca mais vi o leitor. Nem no lugar dele, nem recostado no apoio do lado do motorista... nem em lugar nenhum. Será que tá de férias? Que mudou de serviço, ou de linha de ônibus? Não é como se não tivesse qualquer outra distração; quem tá de pé num ônibus lotado se distrai o bastante simplesmente não caindo com os sacolejos; é só que é estranho não ver mais o leitor. Até tentei pegar uma revista lá da escola - tinha quadrinhos, não muita coisa escrita e a maioria era engraçada - e trouxe pra ler no ônibus ou na fila, pelo menos. Não virou; até achei lugar pra sentar, mas deu um enjôo desgraçado, e por pouco eu não chamo o Hugo. Pensa num final de dia de lascar. Desci do ônibus mais verde que abacate, e xingando a família do leitor até a décima oitava geração, e desisti de brigar com a natureza. Nada mais de ler em ônibus pra mim!

31/10

_ ... aquele, lembra? O do livro.

_ Do horário da noite? Lembro! Tá de brincadeira, rapaz...!

Tava quase pegando mesmo no sono; finalmente consegui lugar pra sentar, e na janela, bem do lado do assento do cobrador, e a canseira da semana inteira montou em cima feito motoqueiro em moto. Mas o sono passou logo quando eu ouvi:

_ Não, é sério mesmo. Bem ali, perto do Sam's Club; o Jairo fez a curva, o ônibus jogou pra direita e ele caiu. Assustou todo mundo. Eu tinha visto, mas achei que tava dormindo. Parada cardíaca, né Jairo...?

Estranho isso, mas pareceu de repente que ficou muito frio, e quieto. Nem o barulho do trânsito eu ouvia, nem a pessoa sentada do meu lado parecia que tava ali. Só do que eu tinha plena consciência era da voz do cobrador, falando com o outro, que tava de folga.

_ É. A gente aproveitou que tava ali e foi pro Bangú, e os médicos confirmaram. Devia ter morrido um ou dois minutos antes, mas do jeito que tava ficou, até o ônibus jogar pro lado. Mas tinha que ver o trabalho que deu. O corpo não tinha enrijecido nem nada, mas tava difícil soltar a mochila dele; o livro tava tão preso na mão que não tinha como soltar. Tiveram que cortar as alças da bolsa, pra tirar do corpo, mas ouvi dizer que só a família tirou o livro...

Não consegui ouvir o resto, porque tava pensando no leitor. Que desgraça, eu nem conhecia o cara...! Não consegui acostumar a ler, também, ainda mais agora, que ele levou pro túmulo o segredo de ler em movimento sem ficar enjoado...

Mas, mesmo que não consiga explicar, fiquei meio triste. Não sei por quê, mas saber que nunca mais ninguém vai rir, arregalar os olhos ou dar de ombros no ônibus, nem nunca mais vai deixar o corpo enquanto viaja pra outro mundo das páginas de um livro nos vinte e poucos minutos de trajeto, lendo sentado ou de pé, me parece que foi uma coisa que não devia ter acontecido. Quero dizer, quanta gente ainda lê com tanta dedicação por aí?

Eu sei que eu não.

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